sábado, 19 de julho de 2008

Uma Crítica - sobre o filme do ano


INTO THE WILD (EUA, 2007)

Uma viagem em busca do auto-conhecimento, até as últimas consequências. Talvez seja essa uma boa maneira de definir o último filme de Sean Penn, baseado no livro de Jon Krakauer, sobre a história real de um universitário que abandona um futuro brilhante para levar uma vida selvagem no Alasca. De fato, os povos antigos sempre foram unânimes em retratar, através de mitos, histórias de profetas e iluminados, a importância da natureza no processo de busca interior. Também Sean Penn parece estar buscando a si mesmo, quando nos apresenta o filme mais maduro de sua carreira, uma peça rara, sobre um jovem que vai de encontro aos seus instintos.

Leitor voraz de Jack London, Tolstói, entre outros adeptos da vida selvagem, o jovem Christopher McCandless logo se dá conta de algo que a humanidade parece ter esquecido: que a natureza somos nós. Para buscar Deus, seu ídolo Tolstói se une genuinamente à vida selvagem (e simples), pois somente nela reside, segundo as palavras de Chris, “a verdade” que buscamos. A fotografia de Eric Gautier, de tão bela, parece exprimir toda a divindade que emana da natureza. A imensidão das montanhas de neve contrasta com os planos de detalhe de plantas e animais em diversos locais dos EUA, saciando a sede do protagonista em experienciar o mundo - ao som da imperdível trilha de Eddie Vedder, líder do Pearl Jam. Chris deslumbra-se com a água do banho, as belas paisagens, o mar, vibrando com cada conquista na tentativa de domar a natureza para sobreviver; mas também sofre quando tem que matar um alce, e, com as mãos sujas de sangue, colhe as vísceras do animal que será, por fim, devorado por outros. São as leis da natureza, nas quais o instinto de sobrevivência fala mais alto - e percebe-se que ali não cabem julgamentos.

Para “experimentar o novo” com a mais genuína liberdade, Chris livra-se dos documentos – apelida-se Alexander Supertramp -, e também do dinheiro, carro, diploma, ou qualquer outra coisa material que o prive de viver cada instante daquela viagem por inteiro. Até mesmo a família, quando perguntado, ele afirma que já não tem; mas é compreensível que uma alma aventureira queira distanciar-se de pais excessivamente preocupados com dinheiro, reputação, formalidades, e que ainda arrumam tempo para se estapearem. O dinheiro, segundo ele, deixa as pessoas demasiadamente cautelosas. E o desejo de juntá-lo em nome de uma segurança excessiva expressa, no fundo, o conhecido medo da morte. Destemido ao extremo, ele queima incontáveis notas de dólares, negando para sempre a vida confortável e anêmica que levava. Quando descobre que até mesmo a história do relacionamento dos pais era uma farsa - e como Ivan Ilitch, personagem de Tolstói, percebe que sua vida “é uma mentira” – ele vai buscar a verdade no mundo dos sentidos, no lado mais puro do ser.

Com um senso de humanidade extrema, o filme de Sean Penn é dividido em capítulos de acordo com o amadurecimento gradual do protagonista. De início, é predominante a intenção de Chris de fugir do passado, quando despreza seu nome, sua família, a sociedade e, consequentemente, o ser humano, qualificando-o como cruel; também parece temer o apego aos amigos que faz pelo caminho, abandonando-os sem deixar rastros. Mas o conhecido poder tranquilizador da natureza, do silêncio, a solidão meditativa, a literatura e a generosidade das pessoas que encontra, vai mudando completamente sua visão de mundo. Momentos antes de chegar ao Alasca, Alex reconhece nas palavras de um senhor sábio a importância do perdão como elemento libertador e de união com Deus – ou com o todo. Nesse momento, contemplando a imensidão vista do topo da montanha, os dois presenciam o sol brilhar intensamente em suas direções, simbolizando uma luz divina. Esse é o chamado capítulo final, o da sabedoria; após percorrer céus e terras em busca de si mesmo, Alex finalmente conclui que precisa retornar e dividir com todos a linda aventura que viveu. Mas é tarde demais. É época de cheia dos rios e, tendo rasgado os mapas, ele fica preso num terreno inóspito no Alasca. Mas não se rende à amargura um momento sequer; reescrevendo seu nome e sua verdadeira identidade, Chris permanece até o fim como o mesmo rapaz doce, sensível, encantado com a beleza que o cerca.
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Julia Lima

sábado, 12 de julho de 2008

Um conto em Portugal

(conto situado na cidade em que vivo, Braga, Portugal - baseado em um sonho que tive.)


O Pesar

Entrei em Braga algo desconfiado. Nada parecia ser como era. Embora eu já tivesse vivido naquela cidade portuguesa em anos recentes, as coisas estavam ligeiramente irreconhecíveis. Talvez devido ao peso que carregava, ao cansaço ou à sonolência que dominavam o meu corpo naquela manhã; ou ainda ao horário pouco usual em que adentrara a cidade, ao raiar do sol de um dia de verão. O fato é que até mesmo o sol recuava tímido, num céu cinzento de uma cidade que era Braga, mas não parecia ser.

Enquanto caminhava ouvindo apenas o som alto da minha respiração – carregava nos braços uma grande encomenda da qual desconhecia o destino -, reparava nos prédios mais antigos, cujas fachadas procuravam manter-se sempre iguais, mas que naquele dia eram levemente diferentes. Talvez porque estivesse tudo fechado, pensei para me acalmar, tão forte era o meu estranhamento. O certo é que Braga soava, cheirava, apresentava-se para mim como um cenário – a encenação inanimada de um lugar que não existia mais -, e isso me assustava.

Já estava passando pelo centro histórico, em frente ao antigo Café Vianna, com suas portas fechadas, quando parei para descansar em uma das esplanadas. Não estava habituado a encontrar os antigos cafés da cidade, que durante anos me fizeram companhia, como estabelecimentos vazios com cadeados pouco amigáveis. Logo os sinos das igrejas anunciarão o horário da cidade ganhar vida, me consolei. Era uma questão de tempo. Talvez tudo ali fosse uma questão de tempo, e daí o meu desconforto: embora bem conservados, os antigos prédios pareciam deteriorar-se diante dos meus olhos. Me levantei, evitando encará-los em seus pormenores, para fugir da tristeza. Tinha uma encomenda a entregar.

Uma grande avenida ganhava forma à minha frente, e eu não sabia bem para onde ir. O peso parecia cada vez mais pesado, assim como o meu corpo. Os prédios ganhavam imponência. Em qual deles deveria parar? Se não sabia sobre o meu destino, numa cidade que me parecia estranha, sabia muito menos sobre o teor da encomenda. Era apenas algo pesado sobre os meus braços, enrolado misteriosamente para ser entregue a alguém mais misterioso ainda. E logo um medo subiu ligeiro e reto pelas minhas costas, até o topo da cabeça. Nada parecia fazer sentido. Por um instante, poderia abandonar o embrulho no chão e simplesmente ir embora. Parecia a melhor solução. Mas não poderia fazer isso. Não, não. Algo mais forte me dizia que tinha de continuar.

E pensando nisso, no entanto, parei para descansar na calçada. Poderia me sentar no meio da rua, tamanha a quietude daquela cidade. Somente as nuvens se moviam, e apurando os ouvidos, quase se poderia ouvi-las. Segui em frente na esperança de conseguir passar o meu fardo adiante; me doíam os ombros, os braços e os joelhos. Caminhei até avistar ao longe um estabelecimento de portas abertas. Seria ali? Finalmente me livraria de todo aquele pesar, e deixaria aquela cidade de alma e mãos livres?

Olhava fixamente para o lugar, caminhando cada vez mais rápido. Era aquele o destino final, tinha que ser. Logo vi um balcão, estante, escadas de madeira. Não havia ninguém, somente um punhado de árvores mortas e envernizadas. Seria um hotel, ou pensão abandonados? Por um momento, senti que era ali. Logo apareceu um rapaz, sério, me cumprimentando com um aceno de cabeça do outro lado do balcão. Pegou em alguns papéis e começou a preenchê-los, sem pestanejar. Depois parou, me olhou com o peso nos braços e apontou para um sofá no canto da sala: “Pode desenrolar e deixar ali”. Retirei com cuidado uma enorme manta que cobria com muita voltas aquele volume. Até que percebi, para meu espanto, que era eu. Estava ali, deitado num velho sofá, o meu próprio corpo! Como era possível? Então eu havia morrido? De fato, o corpo parecia sem viço, estático, quase um boneco. Levei as mãos ao peito e me certifiquei de que estava inspirando; então respirei aliviado. Se sentia o arfar dos meus pulmões, o cansaço, as velhas dores nas costas, como não poderia estar vivo?, me perguntei. E ali, sentado na beira do sofá diante do meu próprio corpo, como um médico a assistir um doente, percebi que o rapaz me observava. “Vai ficar tudo bem”, disse, concluindo com um inesperado sorriso. Nada parecia ser grave, e ele serenamente retornou aos seus afazeres. Também eu deveria retornar, pensei. Da porta já se viam os primeiros raios de sol, que me convidaram à rua. Braga, como se tivesse sido revestida em poucos minutos, me parecia estranhamente familiar. Contemplei-a, deixando para trás aquele corpo pálido, embora fosse ele uma parte de mim. Muitas perguntas permaneciam sem resposta. Mas era boa a sensação de ter carregado um peso sozinho até o fim. Parei para um café. Começava o dia para os primeiros transeuntes nas calçadas, e já se ouviam carros e outras portas se abrirem. Sentia-me mais leve do que nunca, rodeado de sol e vida, caminhando na direção de onde vim.


Julia Lima

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Catarina, a Grande


Já faz mais de um ano que ganhei uma gata, Caty. Foi meu primeiro animal de estimação, já que nunca me foi concedido pela minha mãe o direito de ter um gato ou cachorro em casa. Meses antes de conhecê-la, indo morar em Madrid, manifestei aos amigos a vontade de ter um animalzinho. A maioria me aconselhou a ter cachorros, porque gatos “são esnobes, pouco atenciosos e nada carinhosos”. Ledo engano. O desejo continuou, e foi crescendo de tal maneira que, como muitas coisas em minha vida, logo se realizou.

Tudo começou quando conheci meu atual marido português, Nuno, que na época estava visitando Madrid. Começamos a namorar, e logo depois ele adotou Caty de uma maneira atípica. Conhecia-a da rua, perto de casa, e se impressionava com o jeito amistoso com que ela miava sempre que ele passava por ali - e respondia-lhe com brincadeiras. Até que um dia foi correr na rua e encontrou-a atropelada, desmaiada, o maxilar totalmente destroçado. Com muita pena, Nuno resolveu salvar sua vida, levando-a ao veterinário e se endividando para pagar sua operação.

Quando estava curada, a veterinária recomendou cautela, pois, de uma maneira geral, os gatos vira-latas são arredios e não se adaptam à vida no lar. Outro engano. De início, Caty se mostrou um pouco medrosa, desconfiada, devido à violência do acidente; mas não demorou para que pulasse nos ombros de Nuno e se enrolasse no pescoço dele, como um casaco de pele! - hábito que mantém até hoje. Comecei a visitá-lo regularmente, e o carinho de Caty para comigo não era menor. Belíssima (como a maioria dos gatos), muito carinhosa (como a minoria dos gatos), atenciosa, brincalhona, aquela gata - modéstia à parte - era realmente irresistível. Tanto que meu marido prometeu devolvê-la à rua logo que se recuperasse totalmente, por achar que lá ela teria mais liberdade e seria mais feliz do que num apartamento...Mas nunca conseguiu desgarrar-se dela.

Logo fui morar junto com Nuno em Braga, Portugal - nos casamos - e passei a ter uma gata que nos recebia todos os dias na porta, fazendo festa, subindo sempre no nosso colo, nos fazendo carinho com a própria patinha, dormindo abraçado, brincando de correr, olhando fixamente para nós sempre que estávamos junto dela...Seus olhos, muito expressivos, nos dizem tanta coisa sem dizer nada! E até mesmo quando mia, ela sabe como pedir algo ou responder às nossas perguntas, pois entende boa parte do que estamos dizendo. Por exemplo, basta dizer “papai chegou” para que ela vá correndo para a porta receber o Nuno!, rsrs... Sim, temos Caty como uma filha. Pode parecer bobagem, mas no meu inconsciente ela está representada assim - a ponto de a inocência e os gestos das crianças na rua sempre me lembrarem ela. Às vezes tenho ímpetos de mãe superprotetora (rsrs), quando a impeço de passear no parapeito da janela, ou carrego-a pela casa como um bebê...

Obviamente, é grande o meu desejo de ser mãe um dia, mas Caty jamais perderá o seu lugar no meu coração. Ela é especial. Sente quando estamos tristes, quando queremos ficar sozinhos ou precisamos da sua presença. A cada dia ela me surpreende mais com sua sensibilidade. E à veterinária também, ao revê-la depois de um tempo: “É uma gata de rua muito diferente! Carinhosa...faz até ron-ron!”, exclamou, sorrindo. Com todas essas virtudes juntas, só mesmo Caty – apelido de Catarina, a Grande (rsrs) –, uma gata de porte pequeno e coração gigante. Explicando assim, é fácil entender o nosso amor por ela.

sábado, 10 de maio de 2008

Perfil - Homenagem a André Setaro


UM CLÁSSICO DO CINEMA
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Aos 53 anos, André Olivieri Setaro é um homem à margem do seu tempo. Pela janela da Faculdade de Comunicação da Ufba, assiste a vida passar, com a mesma passividade de quem vai ao cinema e não se identifica com o que vê. “Eu não pertenço mais a esse mundo”, sentencia. A lentidão dos passos e das palavras possuem o ritmo dos filmes que gosta, fazendo de sua presença quase uma encenação. “Ninguém mais hoje contempla nada”, diz o professor, blasfemando contra a velocidade dos tempos pós-modernos.
Vagando pelos corredores velozes da faculdade, os sapatos que se arrastam com dificuldade, equilibrando o corpo curvado pela timidez. A barba branca esconde um sorriso, enquanto ele conserta os óculos para melhor enxergar os filmes que vê. “Já imaginaram o que seria um crítico de cinema cego?”, sorri. Os olhos, curiosamente, são como os negativos de filmes, particularmente sensíveis à luz do sol. Sob os óculos escuros, o olhar perdido parece, a todo o momento, projetar imagens de um tempo que não voltará mais. Tempos em que o cinema se legitimava como arte nos filmes de Godard, na Cahiers, a época áurea do cinema americano ou no surgimento de Bergmans, Fellinis e do consagrado cidadão Orson Welles.
Essas e outras cinematografias são resumidas em poucas palavras, entre uma tragada de cigarro ou outra requerida educadamente aos alunos. Segundos depois, o que se vê ali não é tão somente um homem de meia-idade tragando um cigarro, mas um momento de raro prazer em que a fumaça é degustada lentamente após a exibição de cada filme. “Eu posso fumar?”, pergunta, a fala pausada e inconfundível, com um isqueiro nas mãos. E a fumaça se dispersa pela sala junto a impressões diversas sobre a vida, suas angústias e outras lembranças.
Nas aulas seguintes, os filmes mudam, mas semelhante aos diretores que aprecia, a forma de transmitir a mensagem permanece. Cada detalhe de um quadro, movimento de câmera apontado, evidencia o prazer incansável de assistir o mesmo cinema, de fumar os mesmos cigarros até a última ponta. Vive-se intensamente cada manhã. Ou vivia-se.
As matinês no Cine Guarani, na Bahia dos intelectuais da década de 60, freqüentando as aulas de Walter da Silveira no Clube de Cinema ao lado de Glauber Rocha, Rex Schindler e Sante Scaldaferri são momentos incomparáveis para Setaro. “Havia a Rua Chile, o centro, havia uma elegância que desapareceu”, lamenta o carioca. Além do mais, reclama o desaparecimento da cultura humanística nos suplementos culturais, repletos de grandes ensaios como os de Paulo Emílio Salles Gomes. “Hoje é tudo muito especializado”, acrescenta. Só nos jornais, já se vão mais de trinta anos dedicados ao cinema, que ele hoje divide com outras colunas, incluindo matérias sobre as pernas de Marilyn Monroe, ou a beleza inesquecível de Brigitte Bardot. “Casamento é uma hiperconsumição”, afirma sorrindo, com o ceticismo de quem já se casou três vezes sem acreditar na bênção de Deus. “Sou ateu”, declara, com uma convicção quase religiosa.
O interesse pelo cinema vem crescendo desde os 7 anos de idade, e hoje concorre com duas de suas maiores obsessões: a morte e o tempo. A primeira delas é assunto corriqueiro em suas aulas, entremeada por muitas tiradas de humor negro. A segunda é quase sintomática em se tratando de um crítico de cinema, que assiste de perto às hábeis formas de se manipular o tempo.
Se o seu ritmo lento e incomum contrasta tanto com a era atual, a interação com o mundo se faz sobretudo no exercício da observação. As idas aos bares, cada vez mais solitárias e freqüentes, são também um meio de estudar as pessoas ao redor. É como se ignorasse que guarda em si um personagem tão curioso e único quanto os filmes que admira. “Gosto de estudar as pessoas”, diz o senhor do tempo, que merecia ser estudado como os grandes clássicos do cinema.
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Julia Lima

(perfil escrito em 2004, para o teste no jornal Correio da Bahia)

Um conto


ZICA

Vida de pobre é rica em desgraça. Dia desses tava passando pela Lapa, vento zunindo, choro de mulher. Que é que há, perguntei. Comeram a Zica. Comeram a Zica à força, sem pedir licença. E mesmo que pedissem, quem deixaria? Zica era cachorra fino trato, pêlo escovado, não conhecia a rua. Acabou distribuída no velho churrasco de domingo, último sábado. Nem esperaram o dia seguinte. Mundo cão.
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Julia Lima
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(inspirado nos contos do escritor João Antônio)

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Um poema - II

O SOBRENATURAL

O sobrenatural
Se esconde embaixo da cama
Espelhos e cortinas
Vozes, sopros, aparições
Vindas de outras dimensões
- É sina.

São segredos de Deus
Que rebentam na escuridão
Em noite de lua cheia
Ou dia de procissão
Nos terços das beatas
Milagres, ritos e meditação

Seriam também anjos
Ou almas que vagam sofridas
em rastros de temor
Mas se uma alma vive em ti
Somos iguais no medo e na dor

O sobrenatural
Paira sobre o natural
É o óbvio que não se enxerga
O acontecimento que prevemos
E depois do acontecido, descremos

Se é somente alucinação
Engodo, medo sem explicação
Ainda assim o sobrenatural vive em nós
E negá-lo, aniquilá-lo
Seria calar sua própria voz.


Julia Lima

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Um poema

MORTE E VIDA

Viveria para morrer
Se a morte fosse celebrada
Como um começo
E recomeço
De girassóis a nascerem
Num túmulo sem endereço

Viveria para morrer
Se a morte fosse serena e bela
Esboçada num sorriso
Como a brisa da janela
Na derradeira casa em que vivi

Viveria para morrer
E renascer
Mil vezes mais
Do que cada célula do meu corpo
Pudesse contar sobre mim
Antes que tudo desaparecesse
E retornaria, enfim

Viveria para morrer
Sem agonia
Ou êxtase
Mas apenas a sabedoria
De viver o presente que a vida nos dá

Viveria para morrer
Se assim tivesse de ser
Para então compreender
O que é a vida.


Julia Lima

domingo, 30 de março de 2008

UM PERFIL










(Perfil assinado por mim no jornal "Correio", 2006, em linguagem e formato mais "padrao"...)

Capoeirista versátil



Mestre Boa Gente, 60 anos, já fez incursões pelo samba, maculelê, rádio e teatro

Mestre Boa Gente desenvolve um trabalho social no Vale das Pedrinhas, ensinando a crianças e jovens carentes:

`Eu aprendo ensinando´

Quem vê o andar gingado de mestre Boa Gente, arrastando chinelos e calças brancas pelo Vale das Pedrinhas, nem imagina que ele possua tantas outras facetas além da boa e velha capoeira. Iniciado desde os 6 anos nos movimentos africanos, Boa Gente conheceu a capoeira em todas as suas vertentes, experimentando diferentes formas de dança e combate. Seus pés calejados já trilharam desde os passos delicados da dança de salão até a brutalidade pujante dos ringues de vale-tudo. E como se não bastasse tanta versatilidade, Boa Gente já fez incursões pelo samba, maculelê, taekwondô, dança afro, rádio, teatro, e o que mais o seu corpo de 60 anos lhe permitir. "A história aqui é longa. É coisa de mais de 30 anos", adverte ele, preparando-se para uma longa entrevista em sua rádio comunitária no Vale das Pedrinhas.

Ali, cercado de alunos carentes do bairro, mestre Boa Gente desenvolve com eles um trabalho social reconhecido no Vale das Pedrinhas e em todos os cantos do mundo. Servindo de tema para um documentário da National Geographic, o dia-a-dia da Associação de Capoeira Mestre Boa Gente já foi exibido para milhões de pessoas ao redor do globo. No terraço de sua casa, em Vale das Pedrinhas, são ministradas aulas gratuitas para mais de 150 crianças, que aprendem com ele os segredos da dança, capoeira, maculelê e até mesmo da locução de rádio, o que comprova a enorme quantidade de conhecimento acumulado. "Eles aprendem um pouquinho de tudo, e aí é que entra a versatilidade: você tem que encontrar o que o outro se adapta melhor", explica ele, deixando óbvio o seu talento para descobrir talentos.

Após as aulas, mestre Boa Gente convida os alunos para participar da elaboração e locução de notícias da rádio comunitária, se inteirando sobre os problemas do bairro onde vivem e conhecendo os princípios da atividade jornalística. "É para tirar a timidez deles nas aulas, aprender a falar", justifica. Criada por ele em 1969, a tradicional Rádio Comunitária de Vale das Pedrinhas divulga notícias gerais e principalmente locais, prestando serviço a toda comunidade. "Aqui é documento, criança que se perde, cachorrinho... se furar um tubo a gente liga para a Embasa", exemplifica ele, enquanto anota a divulgação do enterro de um morador da comunidade.

Atividades diversas

Os trabalhos na rádio e na associação são divididos com o de professor de capoeira dos alunos de uma escola particular, o Colégio São Paulo. Tendo estudado até a 1ª série, mestre Boa Gente acredita que tem aprendido muito com seus alunos. "Eu aprendo ensinando. Hoje, são eles que me ensinam computador", revela modestamente, apontando para um de seus alunos da comunidade.

Pai de quatro filhos, Boa Gente conheceu cedo as artimanhas da capoeira, quando ainda atendia pelo nome de batismo, Vivaldo da Conceição, e vendia nas ruas do interior bananas e mingaus. Na época, ele acabou se mudando de Ibicaraí, "município velho, mas que ninguém conhece", no sul da Bahia, para a cidade de Ilhéus, acompanhando a irmã que acabara de se casar. De Ilhéus para São Paulo, a cidade dos sonhos, seria um pulo, se sua mãe não tivesse exigido que ele fosse para Salvador, local que considerava mais seguro.

Aqui chegando, morador do Calabar, Vivaldo conheceu Mestre Gato, grande capoeirista do bairro, e com ele deu seus primeiros passos e golpes rumo à arte da capoeira. "Naquele tempo, ela era feita na rua, não se fazia em teatro. A capoeira era discriminada, coisa de preto, marginal", conta ele.

Como na rapidez dos movimentos de capoeira, Boa Gente foi se tornando conhecido no meio, e realizou apresentações públicas na academia do famoso mestre Pastinha e na Associação Atlética da Bahia. Com a visibilidade, surgiu seu primeiro convite para o exterior, e lá, nas terras frias da Bélgica, seus golpes de capoeira ficaram marcados entre as manifestações folclóricas de vários países do mundo.

Filho de Ogum

De 1973 para cá, os convites para o exterior não pararam mais: sua capoeira, dança e arte vêm sendo divulgada nos Estados Unidos, em Portugal, Peru, Canadá e, recentemente, no México, onde acaba de receber um convite para reapresentar a peça da qual é protagonista, sobre Zumbi dos Palmares. "Todo ano eu viajo para o exterior. Agradeço a Deus e aos orixás", conta o filho de Ogum, creditando aos convites que recebe à sua versatilidade nata.

Levando a cultura africana aos quatro cantos do mundo, ele já participou de seis documentários estrangeiros, e acaba de voltar de uma viagem a Hollywood, onde ajudou a ensinar capoeira aos dois mais caros atores de artes marciais do cinema americano. "Na primeira vez que fui, fiquei um pouco nervoso. Cair dentro de uma cidade como aquela, sem falar a língua, vindo da periferia de Salvador, do terceiro mundo...", recorda ele, apreensivo. Hoje, a profusão de cartazes, matérias jornalísticas em inglês e fotos no exterior, expostos em sua casa e na rádio comunitária, demonstram que mestre Boa Gente venceu mais essa luta.

Disposto a divulgar a cultura local, ensinando capoeira em várias escolas e universidades do exterior, ele não pensa em morar fora da Bahia. A idade um pouco avançada, assim como o amor pela cultura local, impedem-no de viver no exterior: mestre Boa Gente não saberia viver sem o tempero baiano, o sol do Verão, ou mesmo um bom prato de feijoada. Mesmo assim, seus olhos brilham ao falar das viagens e experiências que viveu, confirmando sua versatilidade e incansável vontade de aprender. Isso porque, nas horas vagas, o capoeirista ainda arranja tempo para estudar inglês, e já fala espanhol com facilidade. "Vou continuar lutando", anuncia o mestre, sempre disposto a dar novos passos na capoeira, na arte e na vida.

sábado, 15 de março de 2008

Uma crônica


Meu Amigo Imortal

Lembro-me dele já nos últimos tempos de faculdade. Tempos distantes, aqueles. Já ao longe avistava sua figura desconjuntada, grossos óculos, cabeludo, levando nos braços três ou quatro livros, desses de capa dura, em grandes letras douradas. Estava sempre atrasado. Andava distraído, atravessava a rua sem mais, olhando os pensamentos perdidos no chão. E era então que ele se aproximava lentamente, às voltas com citações e notas sobre uma última leitura, e preenchia nossas manhãs com autores e títulos ainda sem importância para nós.

Pelos corredores, blasfemava contra repórteres e jornais de grande circulação, atentando para o prazer e a importância de se ler e reler os grandes clássicos. Mas não lhe davam ouvidos. Diziam-no um velho. No entanto, foi a impaciência de sua juventude que o fez se debruçar sobre um conjunto imensurável de obras antigas, tomando Goethe, Proust e Montaigne por amigos íntimos. Perante nosso seleto grupo de futuros jornalistas, ousava declarar que não lhe apeteciam as “novidades”; e citava Borges, em sua visão soturna de que a imprensa veio multiplicando até a vertigem textos desnecessários e fáceis de serem esquecidos.

Os colegas, em vão, discutiam, questionavam o que raios ele estaria fazendo ali. Afinal, em anos de convivência no jornalismo, flagravam-no freqüentemente disperso, alheio às aulas, quando não levantava e declamava em voz grave algum poema de um autor clássico abordado porventura por um professor. Escrevia contos. Quando não os agradava, contava bolinhas de papel sobre a mesa, para em seguida levantar-se e, passo a passo, jogá-las uma a uma no lixo da sala de aula. Era demasiado lento.

Certo dia, no pátio vazio da faculdade, consegui que me mostrasse um de seus contos. Apenas li alguns trechos, que descobri incompreensíveis. Foi quando revelou que nutria há muito o desejo íntimo de ser um imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL). Mais do que isso, ele queria o privilégio de constar em referências, ser lido, relido e lembrado por toda a eternidade. Mas na efemeridade da vida, já anoitecia. Sorri e me despedi.

Eis aqui uma das últimas recordações que guardo do meu amigo. Depois disso, só avistei-o mais uma vez ao longe, lendo as mesmas folhas, que um vento repentino teimava em querer arrancar. Até que, nesses últimos dias, recebi uma triste notícia. É que o seu temível hábito de atravessar a rua distraído custou-lhe a vida. Tinha tudo pela frente, mas esquecera-se de olhar para os lados. Nem sequer chegou a publicar seus contos enigmáticos. Encontraram-no caído, os sonhos desmoronados, os passantes sem conseguir identificá-lo. Morrera anônimo. O que me consola é que, nos últimos tempos, ele deve ter se imaginado, desgostoso, tomando chá na ABL ao lado do Paulo Coelho, ou outros escritores de gosto fácil. Acho que com isso morreu menos frustrado por não ter conseguido o que queria. Além de tudo, será por mim eternamente lembrado. Afinal, já não se fazem mais imortais como antigamente.

Julia Lima

(Crônica/conto publicada em 2003, no jornal da faculdade. Bons tempos.)

sábado, 12 de janeiro de 2008

O Mar de Sophia


O mar tem uma grande importância em minha vida, e acredito que na vida de muitos. Vivendo na Europa, distante das águas e do sol de Salvador, devo afirmar que não é só a saudade de mergulhar naquelas ondas, com temperatura e cores perfeitas, que me fez escrever esse texto. Criada numa cidade quase cercada de mar por todos os lados, posso dizer que ele rodeia quase constantemente os meus sonhos. Sim, falemos mais uma vez, brevemente, de sonhos: em 90% deles, as desavenças, perseguições, vôos, sexo, lutas, tudo que sonho acontece dentro do mar. Algumas vezes, o cenário sofre variações, tornam-se piscinas ou rios, para então desaguarem novamente em oceanos. Estranha obsessão. Os psicanalistas diriam que o mar é como o inconsciente, e aquele que sonha como um ser em busca de melhor conhecê-lo, mergulhando nas profundezas irracionais do seu intelecto. Devem estar certos.

Não por acaso, as águas estao sempre presentes nos meus filmes, realizados ou não. De início, era uma coisa inconsciente; hoje sinto falta do mar em algumas cenas, e acrescento-o como uma parte de mim. O primeiro filme que realizei, baseado num conto de Jorge Luís Borges, trata da história surreal de um homem que depara-se consigo mesmo quando jovem, numa praça em frente a um rio. Os closes das águas no filme simbolizam o tempo que passa, e fiz questão de modificar o cenário para um lugar deserto e paradisíaco, na areia branca, onde ocorre o encontro do rio com o mar, o jovem e o velho, o passado e o presente, entre outras dualidades do filme, intitulado À Margem do Tempo.

O mar também está presente de maneira quase obsessiva na cultura portuguesa, cujas águas são mais frias, mas nem por isso menos belas. Basta uma rápida passagem por Lisboa para conferir a eterna nostalgia lusitana do período das grandes navegações, presentes nos monumentos, exposições, arquitetura, em que proas de navios enfeitam topos de edificações, e estátuas de homens descomunais da idade média se dirigem ao mar em busca do desconhecido. Talvez seja desconhecido a palavra que melhor sintetiza o imaginário sobre os oceanos; e quanto mais sonho com eles, mais descubro sobre imagens e sensacões secretas do meu inconsciente.

Em minhas descobertas dentro e fora de mim, acabei ancorando na terra das grandes navegações, e encontrei um povo tão apaixonado pelo mar quanto eu. Mas o melhor foi ter-me deparado com uma mulher muito especial, cujas palavras vem povoando minha mente: Sophia de Mello Breyner Andresen. Tradicional escritora portuguesa, muito prestigiada aqui - e pouco conhecida no Brasil -, romancista, poetisa e contista, Sophia me comoveu com seu encantamento pelo mar, que dá o titulo a um dos seus livros de poesia mais conhecidos. Transcrevo abaixo, em sua memória, um trecho que faz transbordar emoções a cada vez que o leio:


"Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar".


Sophia de Mello Breyner Andresen