sábado, 15 de março de 2008

Uma crônica


Meu Amigo Imortal

Lembro-me dele já nos últimos tempos de faculdade. Tempos distantes, aqueles. Já ao longe avistava sua figura desconjuntada, grossos óculos, cabeludo, levando nos braços três ou quatro livros, desses de capa dura, em grandes letras douradas. Estava sempre atrasado. Andava distraído, atravessava a rua sem mais, olhando os pensamentos perdidos no chão. E era então que ele se aproximava lentamente, às voltas com citações e notas sobre uma última leitura, e preenchia nossas manhãs com autores e títulos ainda sem importância para nós.

Pelos corredores, blasfemava contra repórteres e jornais de grande circulação, atentando para o prazer e a importância de se ler e reler os grandes clássicos. Mas não lhe davam ouvidos. Diziam-no um velho. No entanto, foi a impaciência de sua juventude que o fez se debruçar sobre um conjunto imensurável de obras antigas, tomando Goethe, Proust e Montaigne por amigos íntimos. Perante nosso seleto grupo de futuros jornalistas, ousava declarar que não lhe apeteciam as “novidades”; e citava Borges, em sua visão soturna de que a imprensa veio multiplicando até a vertigem textos desnecessários e fáceis de serem esquecidos.

Os colegas, em vão, discutiam, questionavam o que raios ele estaria fazendo ali. Afinal, em anos de convivência no jornalismo, flagravam-no freqüentemente disperso, alheio às aulas, quando não levantava e declamava em voz grave algum poema de um autor clássico abordado porventura por um professor. Escrevia contos. Quando não os agradava, contava bolinhas de papel sobre a mesa, para em seguida levantar-se e, passo a passo, jogá-las uma a uma no lixo da sala de aula. Era demasiado lento.

Certo dia, no pátio vazio da faculdade, consegui que me mostrasse um de seus contos. Apenas li alguns trechos, que descobri incompreensíveis. Foi quando revelou que nutria há muito o desejo íntimo de ser um imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL). Mais do que isso, ele queria o privilégio de constar em referências, ser lido, relido e lembrado por toda a eternidade. Mas na efemeridade da vida, já anoitecia. Sorri e me despedi.

Eis aqui uma das últimas recordações que guardo do meu amigo. Depois disso, só avistei-o mais uma vez ao longe, lendo as mesmas folhas, que um vento repentino teimava em querer arrancar. Até que, nesses últimos dias, recebi uma triste notícia. É que o seu temível hábito de atravessar a rua distraído custou-lhe a vida. Tinha tudo pela frente, mas esquecera-se de olhar para os lados. Nem sequer chegou a publicar seus contos enigmáticos. Encontraram-no caído, os sonhos desmoronados, os passantes sem conseguir identificá-lo. Morrera anônimo. O que me consola é que, nos últimos tempos, ele deve ter se imaginado, desgostoso, tomando chá na ABL ao lado do Paulo Coelho, ou outros escritores de gosto fácil. Acho que com isso morreu menos frustrado por não ter conseguido o que queria. Além de tudo, será por mim eternamente lembrado. Afinal, já não se fazem mais imortais como antigamente.

Julia Lima

(Crônica/conto publicada em 2003, no jornal da faculdade. Bons tempos.)

5 comentários:

Salvatore disse...

oi,ju..adorei,muito bem inscrito.
mas, ju, nao posso me furtar de perguntar uma coisa, uma vez que fizemos juntos a faculdade e que seu relato começa com "Lembro-me dele já nos últimos tempos de faculdade."...ele è alguem da facom?? (se nao for, vai ser muita engraçada essa minha pergunta).bjs

Julia Ferreira disse...

Não, Sá...Posso ter me inspirado aqui e ali em algumas pessoas da faculdade - e fora dela -, mas é um personagem fictício! rsrs...
beijinhos!!

Salvatore disse...

ah, q susto! kkkkkk
dps passa la no blog p ver as fts de barça.
bjs

Salvatore disse...

morreu na contra-mao atrapalhando o trafego...

Unknown disse...

Amigaaa! Tadinho do Paulo Coelho... mais benevolência, amigaa! heheh