sábado, 19 de julho de 2008

Uma Crítica - sobre o filme do ano


INTO THE WILD (EUA, 2007)

Uma viagem em busca do auto-conhecimento, até as últimas consequências. Talvez seja essa uma boa maneira de definir o último filme de Sean Penn, baseado no livro de Jon Krakauer, sobre a história real de um universitário que abandona um futuro brilhante para levar uma vida selvagem no Alasca. De fato, os povos antigos sempre foram unânimes em retratar, através de mitos, histórias de profetas e iluminados, a importância da natureza no processo de busca interior. Também Sean Penn parece estar buscando a si mesmo, quando nos apresenta o filme mais maduro de sua carreira, uma peça rara, sobre um jovem que vai de encontro aos seus instintos.

Leitor voraz de Jack London, Tolstói, entre outros adeptos da vida selvagem, o jovem Christopher McCandless logo se dá conta de algo que a humanidade parece ter esquecido: que a natureza somos nós. Para buscar Deus, seu ídolo Tolstói se une genuinamente à vida selvagem (e simples), pois somente nela reside, segundo as palavras de Chris, “a verdade” que buscamos. A fotografia de Eric Gautier, de tão bela, parece exprimir toda a divindade que emana da natureza. A imensidão das montanhas de neve contrasta com os planos de detalhe de plantas e animais em diversos locais dos EUA, saciando a sede do protagonista em experienciar o mundo - ao som da imperdível trilha de Eddie Vedder, líder do Pearl Jam. Chris deslumbra-se com a água do banho, as belas paisagens, o mar, vibrando com cada conquista na tentativa de domar a natureza para sobreviver; mas também sofre quando tem que matar um alce, e, com as mãos sujas de sangue, colhe as vísceras do animal que será, por fim, devorado por outros. São as leis da natureza, nas quais o instinto de sobrevivência fala mais alto - e percebe-se que ali não cabem julgamentos.

Para “experimentar o novo” com a mais genuína liberdade, Chris livra-se dos documentos – apelida-se Alexander Supertramp -, e também do dinheiro, carro, diploma, ou qualquer outra coisa material que o prive de viver cada instante daquela viagem por inteiro. Até mesmo a família, quando perguntado, ele afirma que já não tem; mas é compreensível que uma alma aventureira queira distanciar-se de pais excessivamente preocupados com dinheiro, reputação, formalidades, e que ainda arrumam tempo para se estapearem. O dinheiro, segundo ele, deixa as pessoas demasiadamente cautelosas. E o desejo de juntá-lo em nome de uma segurança excessiva expressa, no fundo, o conhecido medo da morte. Destemido ao extremo, ele queima incontáveis notas de dólares, negando para sempre a vida confortável e anêmica que levava. Quando descobre que até mesmo a história do relacionamento dos pais era uma farsa - e como Ivan Ilitch, personagem de Tolstói, percebe que sua vida “é uma mentira” – ele vai buscar a verdade no mundo dos sentidos, no lado mais puro do ser.

Com um senso de humanidade extrema, o filme de Sean Penn é dividido em capítulos de acordo com o amadurecimento gradual do protagonista. De início, é predominante a intenção de Chris de fugir do passado, quando despreza seu nome, sua família, a sociedade e, consequentemente, o ser humano, qualificando-o como cruel; também parece temer o apego aos amigos que faz pelo caminho, abandonando-os sem deixar rastros. Mas o conhecido poder tranquilizador da natureza, do silêncio, a solidão meditativa, a literatura e a generosidade das pessoas que encontra, vai mudando completamente sua visão de mundo. Momentos antes de chegar ao Alasca, Alex reconhece nas palavras de um senhor sábio a importância do perdão como elemento libertador e de união com Deus – ou com o todo. Nesse momento, contemplando a imensidão vista do topo da montanha, os dois presenciam o sol brilhar intensamente em suas direções, simbolizando uma luz divina. Esse é o chamado capítulo final, o da sabedoria; após percorrer céus e terras em busca de si mesmo, Alex finalmente conclui que precisa retornar e dividir com todos a linda aventura que viveu. Mas é tarde demais. É época de cheia dos rios e, tendo rasgado os mapas, ele fica preso num terreno inóspito no Alasca. Mas não se rende à amargura um momento sequer; reescrevendo seu nome e sua verdadeira identidade, Chris permanece até o fim como o mesmo rapaz doce, sensível, encantado com a beleza que o cerca.
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Julia Lima

sábado, 12 de julho de 2008

Um conto em Portugal

(conto situado na cidade em que vivo, Braga, Portugal - baseado em um sonho que tive.)


O Pesar

Entrei em Braga algo desconfiado. Nada parecia ser como era. Embora eu já tivesse vivido naquela cidade portuguesa em anos recentes, as coisas estavam ligeiramente irreconhecíveis. Talvez devido ao peso que carregava, ao cansaço ou à sonolência que dominavam o meu corpo naquela manhã; ou ainda ao horário pouco usual em que adentrara a cidade, ao raiar do sol de um dia de verão. O fato é que até mesmo o sol recuava tímido, num céu cinzento de uma cidade que era Braga, mas não parecia ser.

Enquanto caminhava ouvindo apenas o som alto da minha respiração – carregava nos braços uma grande encomenda da qual desconhecia o destino -, reparava nos prédios mais antigos, cujas fachadas procuravam manter-se sempre iguais, mas que naquele dia eram levemente diferentes. Talvez porque estivesse tudo fechado, pensei para me acalmar, tão forte era o meu estranhamento. O certo é que Braga soava, cheirava, apresentava-se para mim como um cenário – a encenação inanimada de um lugar que não existia mais -, e isso me assustava.

Já estava passando pelo centro histórico, em frente ao antigo Café Vianna, com suas portas fechadas, quando parei para descansar em uma das esplanadas. Não estava habituado a encontrar os antigos cafés da cidade, que durante anos me fizeram companhia, como estabelecimentos vazios com cadeados pouco amigáveis. Logo os sinos das igrejas anunciarão o horário da cidade ganhar vida, me consolei. Era uma questão de tempo. Talvez tudo ali fosse uma questão de tempo, e daí o meu desconforto: embora bem conservados, os antigos prédios pareciam deteriorar-se diante dos meus olhos. Me levantei, evitando encará-los em seus pormenores, para fugir da tristeza. Tinha uma encomenda a entregar.

Uma grande avenida ganhava forma à minha frente, e eu não sabia bem para onde ir. O peso parecia cada vez mais pesado, assim como o meu corpo. Os prédios ganhavam imponência. Em qual deles deveria parar? Se não sabia sobre o meu destino, numa cidade que me parecia estranha, sabia muito menos sobre o teor da encomenda. Era apenas algo pesado sobre os meus braços, enrolado misteriosamente para ser entregue a alguém mais misterioso ainda. E logo um medo subiu ligeiro e reto pelas minhas costas, até o topo da cabeça. Nada parecia fazer sentido. Por um instante, poderia abandonar o embrulho no chão e simplesmente ir embora. Parecia a melhor solução. Mas não poderia fazer isso. Não, não. Algo mais forte me dizia que tinha de continuar.

E pensando nisso, no entanto, parei para descansar na calçada. Poderia me sentar no meio da rua, tamanha a quietude daquela cidade. Somente as nuvens se moviam, e apurando os ouvidos, quase se poderia ouvi-las. Segui em frente na esperança de conseguir passar o meu fardo adiante; me doíam os ombros, os braços e os joelhos. Caminhei até avistar ao longe um estabelecimento de portas abertas. Seria ali? Finalmente me livraria de todo aquele pesar, e deixaria aquela cidade de alma e mãos livres?

Olhava fixamente para o lugar, caminhando cada vez mais rápido. Era aquele o destino final, tinha que ser. Logo vi um balcão, estante, escadas de madeira. Não havia ninguém, somente um punhado de árvores mortas e envernizadas. Seria um hotel, ou pensão abandonados? Por um momento, senti que era ali. Logo apareceu um rapaz, sério, me cumprimentando com um aceno de cabeça do outro lado do balcão. Pegou em alguns papéis e começou a preenchê-los, sem pestanejar. Depois parou, me olhou com o peso nos braços e apontou para um sofá no canto da sala: “Pode desenrolar e deixar ali”. Retirei com cuidado uma enorme manta que cobria com muita voltas aquele volume. Até que percebi, para meu espanto, que era eu. Estava ali, deitado num velho sofá, o meu próprio corpo! Como era possível? Então eu havia morrido? De fato, o corpo parecia sem viço, estático, quase um boneco. Levei as mãos ao peito e me certifiquei de que estava inspirando; então respirei aliviado. Se sentia o arfar dos meus pulmões, o cansaço, as velhas dores nas costas, como não poderia estar vivo?, me perguntei. E ali, sentado na beira do sofá diante do meu próprio corpo, como um médico a assistir um doente, percebi que o rapaz me observava. “Vai ficar tudo bem”, disse, concluindo com um inesperado sorriso. Nada parecia ser grave, e ele serenamente retornou aos seus afazeres. Também eu deveria retornar, pensei. Da porta já se viam os primeiros raios de sol, que me convidaram à rua. Braga, como se tivesse sido revestida em poucos minutos, me parecia estranhamente familiar. Contemplei-a, deixando para trás aquele corpo pálido, embora fosse ele uma parte de mim. Muitas perguntas permaneciam sem resposta. Mas era boa a sensação de ter carregado um peso sozinho até o fim. Parei para um café. Começava o dia para os primeiros transeuntes nas calçadas, e já se ouviam carros e outras portas se abrirem. Sentia-me mais leve do que nunca, rodeado de sol e vida, caminhando na direção de onde vim.


Julia Lima

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Catarina, a Grande


Já faz mais de um ano que ganhei uma gata, Caty. Foi meu primeiro animal de estimação, já que nunca me foi concedido pela minha mãe o direito de ter um gato ou cachorro em casa. Meses antes de conhecê-la, indo morar em Madrid, manifestei aos amigos a vontade de ter um animalzinho. A maioria me aconselhou a ter cachorros, porque gatos “são esnobes, pouco atenciosos e nada carinhosos”. Ledo engano. O desejo continuou, e foi crescendo de tal maneira que, como muitas coisas em minha vida, logo se realizou.

Tudo começou quando conheci meu atual marido português, Nuno, que na época estava visitando Madrid. Começamos a namorar, e logo depois ele adotou Caty de uma maneira atípica. Conhecia-a da rua, perto de casa, e se impressionava com o jeito amistoso com que ela miava sempre que ele passava por ali - e respondia-lhe com brincadeiras. Até que um dia foi correr na rua e encontrou-a atropelada, desmaiada, o maxilar totalmente destroçado. Com muita pena, Nuno resolveu salvar sua vida, levando-a ao veterinário e se endividando para pagar sua operação.

Quando estava curada, a veterinária recomendou cautela, pois, de uma maneira geral, os gatos vira-latas são arredios e não se adaptam à vida no lar. Outro engano. De início, Caty se mostrou um pouco medrosa, desconfiada, devido à violência do acidente; mas não demorou para que pulasse nos ombros de Nuno e se enrolasse no pescoço dele, como um casaco de pele! - hábito que mantém até hoje. Comecei a visitá-lo regularmente, e o carinho de Caty para comigo não era menor. Belíssima (como a maioria dos gatos), muito carinhosa (como a minoria dos gatos), atenciosa, brincalhona, aquela gata - modéstia à parte - era realmente irresistível. Tanto que meu marido prometeu devolvê-la à rua logo que se recuperasse totalmente, por achar que lá ela teria mais liberdade e seria mais feliz do que num apartamento...Mas nunca conseguiu desgarrar-se dela.

Logo fui morar junto com Nuno em Braga, Portugal - nos casamos - e passei a ter uma gata que nos recebia todos os dias na porta, fazendo festa, subindo sempre no nosso colo, nos fazendo carinho com a própria patinha, dormindo abraçado, brincando de correr, olhando fixamente para nós sempre que estávamos junto dela...Seus olhos, muito expressivos, nos dizem tanta coisa sem dizer nada! E até mesmo quando mia, ela sabe como pedir algo ou responder às nossas perguntas, pois entende boa parte do que estamos dizendo. Por exemplo, basta dizer “papai chegou” para que ela vá correndo para a porta receber o Nuno!, rsrs... Sim, temos Caty como uma filha. Pode parecer bobagem, mas no meu inconsciente ela está representada assim - a ponto de a inocência e os gestos das crianças na rua sempre me lembrarem ela. Às vezes tenho ímpetos de mãe superprotetora (rsrs), quando a impeço de passear no parapeito da janela, ou carrego-a pela casa como um bebê...

Obviamente, é grande o meu desejo de ser mãe um dia, mas Caty jamais perderá o seu lugar no meu coração. Ela é especial. Sente quando estamos tristes, quando queremos ficar sozinhos ou precisamos da sua presença. A cada dia ela me surpreende mais com sua sensibilidade. E à veterinária também, ao revê-la depois de um tempo: “É uma gata de rua muito diferente! Carinhosa...faz até ron-ron!”, exclamou, sorrindo. Com todas essas virtudes juntas, só mesmo Caty – apelido de Catarina, a Grande (rsrs) –, uma gata de porte pequeno e coração gigante. Explicando assim, é fácil entender o nosso amor por ela.