sábado, 10 de maio de 2008

Perfil - Homenagem a André Setaro


UM CLÁSSICO DO CINEMA
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Aos 53 anos, André Olivieri Setaro é um homem à margem do seu tempo. Pela janela da Faculdade de Comunicação da Ufba, assiste a vida passar, com a mesma passividade de quem vai ao cinema e não se identifica com o que vê. “Eu não pertenço mais a esse mundo”, sentencia. A lentidão dos passos e das palavras possuem o ritmo dos filmes que gosta, fazendo de sua presença quase uma encenação. “Ninguém mais hoje contempla nada”, diz o professor, blasfemando contra a velocidade dos tempos pós-modernos.
Vagando pelos corredores velozes da faculdade, os sapatos que se arrastam com dificuldade, equilibrando o corpo curvado pela timidez. A barba branca esconde um sorriso, enquanto ele conserta os óculos para melhor enxergar os filmes que vê. “Já imaginaram o que seria um crítico de cinema cego?”, sorri. Os olhos, curiosamente, são como os negativos de filmes, particularmente sensíveis à luz do sol. Sob os óculos escuros, o olhar perdido parece, a todo o momento, projetar imagens de um tempo que não voltará mais. Tempos em que o cinema se legitimava como arte nos filmes de Godard, na Cahiers, a época áurea do cinema americano ou no surgimento de Bergmans, Fellinis e do consagrado cidadão Orson Welles.
Essas e outras cinematografias são resumidas em poucas palavras, entre uma tragada de cigarro ou outra requerida educadamente aos alunos. Segundos depois, o que se vê ali não é tão somente um homem de meia-idade tragando um cigarro, mas um momento de raro prazer em que a fumaça é degustada lentamente após a exibição de cada filme. “Eu posso fumar?”, pergunta, a fala pausada e inconfundível, com um isqueiro nas mãos. E a fumaça se dispersa pela sala junto a impressões diversas sobre a vida, suas angústias e outras lembranças.
Nas aulas seguintes, os filmes mudam, mas semelhante aos diretores que aprecia, a forma de transmitir a mensagem permanece. Cada detalhe de um quadro, movimento de câmera apontado, evidencia o prazer incansável de assistir o mesmo cinema, de fumar os mesmos cigarros até a última ponta. Vive-se intensamente cada manhã. Ou vivia-se.
As matinês no Cine Guarani, na Bahia dos intelectuais da década de 60, freqüentando as aulas de Walter da Silveira no Clube de Cinema ao lado de Glauber Rocha, Rex Schindler e Sante Scaldaferri são momentos incomparáveis para Setaro. “Havia a Rua Chile, o centro, havia uma elegância que desapareceu”, lamenta o carioca. Além do mais, reclama o desaparecimento da cultura humanística nos suplementos culturais, repletos de grandes ensaios como os de Paulo Emílio Salles Gomes. “Hoje é tudo muito especializado”, acrescenta. Só nos jornais, já se vão mais de trinta anos dedicados ao cinema, que ele hoje divide com outras colunas, incluindo matérias sobre as pernas de Marilyn Monroe, ou a beleza inesquecível de Brigitte Bardot. “Casamento é uma hiperconsumição”, afirma sorrindo, com o ceticismo de quem já se casou três vezes sem acreditar na bênção de Deus. “Sou ateu”, declara, com uma convicção quase religiosa.
O interesse pelo cinema vem crescendo desde os 7 anos de idade, e hoje concorre com duas de suas maiores obsessões: a morte e o tempo. A primeira delas é assunto corriqueiro em suas aulas, entremeada por muitas tiradas de humor negro. A segunda é quase sintomática em se tratando de um crítico de cinema, que assiste de perto às hábeis formas de se manipular o tempo.
Se o seu ritmo lento e incomum contrasta tanto com a era atual, a interação com o mundo se faz sobretudo no exercício da observação. As idas aos bares, cada vez mais solitárias e freqüentes, são também um meio de estudar as pessoas ao redor. É como se ignorasse que guarda em si um personagem tão curioso e único quanto os filmes que admira. “Gosto de estudar as pessoas”, diz o senhor do tempo, que merecia ser estudado como os grandes clássicos do cinema.
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Julia Lima

(perfil escrito em 2004, para o teste no jornal Correio da Bahia)

Um conto


ZICA

Vida de pobre é rica em desgraça. Dia desses tava passando pela Lapa, vento zunindo, choro de mulher. Que é que há, perguntei. Comeram a Zica. Comeram a Zica à força, sem pedir licença. E mesmo que pedissem, quem deixaria? Zica era cachorra fino trato, pêlo escovado, não conhecia a rua. Acabou distribuída no velho churrasco de domingo, último sábado. Nem esperaram o dia seguinte. Mundo cão.
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Julia Lima
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(inspirado nos contos do escritor João Antônio)