sábado, 12 de julho de 2008

Um conto em Portugal

(conto situado na cidade em que vivo, Braga, Portugal - baseado em um sonho que tive.)


O Pesar

Entrei em Braga algo desconfiado. Nada parecia ser como era. Embora eu já tivesse vivido naquela cidade portuguesa em anos recentes, as coisas estavam ligeiramente irreconhecíveis. Talvez devido ao peso que carregava, ao cansaço ou à sonolência que dominavam o meu corpo naquela manhã; ou ainda ao horário pouco usual em que adentrara a cidade, ao raiar do sol de um dia de verão. O fato é que até mesmo o sol recuava tímido, num céu cinzento de uma cidade que era Braga, mas não parecia ser.

Enquanto caminhava ouvindo apenas o som alto da minha respiração – carregava nos braços uma grande encomenda da qual desconhecia o destino -, reparava nos prédios mais antigos, cujas fachadas procuravam manter-se sempre iguais, mas que naquele dia eram levemente diferentes. Talvez porque estivesse tudo fechado, pensei para me acalmar, tão forte era o meu estranhamento. O certo é que Braga soava, cheirava, apresentava-se para mim como um cenário – a encenação inanimada de um lugar que não existia mais -, e isso me assustava.

Já estava passando pelo centro histórico, em frente ao antigo Café Vianna, com suas portas fechadas, quando parei para descansar em uma das esplanadas. Não estava habituado a encontrar os antigos cafés da cidade, que durante anos me fizeram companhia, como estabelecimentos vazios com cadeados pouco amigáveis. Logo os sinos das igrejas anunciarão o horário da cidade ganhar vida, me consolei. Era uma questão de tempo. Talvez tudo ali fosse uma questão de tempo, e daí o meu desconforto: embora bem conservados, os antigos prédios pareciam deteriorar-se diante dos meus olhos. Me levantei, evitando encará-los em seus pormenores, para fugir da tristeza. Tinha uma encomenda a entregar.

Uma grande avenida ganhava forma à minha frente, e eu não sabia bem para onde ir. O peso parecia cada vez mais pesado, assim como o meu corpo. Os prédios ganhavam imponência. Em qual deles deveria parar? Se não sabia sobre o meu destino, numa cidade que me parecia estranha, sabia muito menos sobre o teor da encomenda. Era apenas algo pesado sobre os meus braços, enrolado misteriosamente para ser entregue a alguém mais misterioso ainda. E logo um medo subiu ligeiro e reto pelas minhas costas, até o topo da cabeça. Nada parecia fazer sentido. Por um instante, poderia abandonar o embrulho no chão e simplesmente ir embora. Parecia a melhor solução. Mas não poderia fazer isso. Não, não. Algo mais forte me dizia que tinha de continuar.

E pensando nisso, no entanto, parei para descansar na calçada. Poderia me sentar no meio da rua, tamanha a quietude daquela cidade. Somente as nuvens se moviam, e apurando os ouvidos, quase se poderia ouvi-las. Segui em frente na esperança de conseguir passar o meu fardo adiante; me doíam os ombros, os braços e os joelhos. Caminhei até avistar ao longe um estabelecimento de portas abertas. Seria ali? Finalmente me livraria de todo aquele pesar, e deixaria aquela cidade de alma e mãos livres?

Olhava fixamente para o lugar, caminhando cada vez mais rápido. Era aquele o destino final, tinha que ser. Logo vi um balcão, estante, escadas de madeira. Não havia ninguém, somente um punhado de árvores mortas e envernizadas. Seria um hotel, ou pensão abandonados? Por um momento, senti que era ali. Logo apareceu um rapaz, sério, me cumprimentando com um aceno de cabeça do outro lado do balcão. Pegou em alguns papéis e começou a preenchê-los, sem pestanejar. Depois parou, me olhou com o peso nos braços e apontou para um sofá no canto da sala: “Pode desenrolar e deixar ali”. Retirei com cuidado uma enorme manta que cobria com muita voltas aquele volume. Até que percebi, para meu espanto, que era eu. Estava ali, deitado num velho sofá, o meu próprio corpo! Como era possível? Então eu havia morrido? De fato, o corpo parecia sem viço, estático, quase um boneco. Levei as mãos ao peito e me certifiquei de que estava inspirando; então respirei aliviado. Se sentia o arfar dos meus pulmões, o cansaço, as velhas dores nas costas, como não poderia estar vivo?, me perguntei. E ali, sentado na beira do sofá diante do meu próprio corpo, como um médico a assistir um doente, percebi que o rapaz me observava. “Vai ficar tudo bem”, disse, concluindo com um inesperado sorriso. Nada parecia ser grave, e ele serenamente retornou aos seus afazeres. Também eu deveria retornar, pensei. Da porta já se viam os primeiros raios de sol, que me convidaram à rua. Braga, como se tivesse sido revestida em poucos minutos, me parecia estranhamente familiar. Contemplei-a, deixando para trás aquele corpo pálido, embora fosse ele uma parte de mim. Muitas perguntas permaneciam sem resposta. Mas era boa a sensação de ter carregado um peso sozinho até o fim. Parei para um café. Começava o dia para os primeiros transeuntes nas calçadas, e já se ouviam carros e outras portas se abrirem. Sentia-me mais leve do que nunca, rodeado de sol e vida, caminhando na direção de onde vim.


Julia Lima

4 comentários:

miro disse...

Excelente, Julia, excelente.
Só achei que você deveria especificar que cidade é Braga, pois muita gente pode ler o texto e não saber que a cidadela é portuguesa.
Mande mais.

Julia Ferreira disse...

Tem razão, Mirinho...
beijo!!

Carolina disse...

Olá.
Adorei o blog. Vou ler todo o arquivo :)
Portugal sempre inspira belos contos!
Abraços.

Sebastião disse...

Muito bom! O desprendimento daquilo que somos, por vezes, assume uma forma quase física. É um libertar de fantasmas que são nossos e, ao mesmo tempo, nos são estranhos. Todos passamos por isso, poucos o conseguirão descrever da forma como o fizeste. Beijo para os dois!