domingo, 16 de dezembro de 2007

Sonhos num país chamado Europa


Nunca soube que o sol, o mar e a Bahia me fariam tanta falta. A espontaneidade do povo - dos pescadores do Rio Vermelho aos tagarelas da fila do banco -, a atmosfera viva e clara, a visão da Baía de Todos os Santos nunca me foram tão caras quanto no periodo em que morei na capital Londrina. No entanto, vivi coisas e pessoas que marcariam para sempre minha personalidade.

Assim que cheguei em Londres, há mais de dois anos atrás, tive a exata noção do que era o tal fenômeno da globalização e a União Européia. A pluralidade de culturas, línguas e experiências flagradas num curto período de tempo me fascinava, surpreendia, e nao havia chances de ficar imune a ela. Numa mesma residência universitária, vivíamos eu, uma enorme alemã, minha amiga grega, uma canadense filha de francês, uma inglesa descendente de indianos e uma chinesa de Hong-Kong, todas em quartos separados, mas respirando os diferentes sabores da mesma cozinha. Em Londres, nada parecia ser impossível. Centro cultural do velho continente, sua grande metrópole, ela exibia o tempo todo o quão coesa poderia ser a União Européia, cujos pequenos territórios foram elevados juntos à condição de um só país. De norte a sul, todos aportavam em Londres para falar inglês, atraídos pelo brilho das libras esterlinas. Era uma mistura desenfreada de culturas. Na rua, nao pude conter o riso diante de uma placa anunciando um restaurante "mexico-polones": mas o que viria a ser isso?

Na escola de cinema que frequentava, o estranhamento não era menor. Os europeus do mercado comum, pagando anualidade muito mais barata que nós, exibiam curta-metragens de imagens insólitas, ou mesmo documentários de guerras civis que nunca soube. Do Brasil, trouxe na mala o filme de um menininho que encontrava na praia um instrumento mágico, fruto de um sonho que havia tido. Como o mundo infantil é conhecido de todos, as palmas dos colegas pareceram compreender a pequena obra.

Com temáticas mais universais em mente, imaginava que um dia encontraria mais espaço como realizadora na cinematografia européia do que na brasileira. Mas os obstáculos nao foram pequenos. Em pouco tempo veio o frio, menos insuportável do que a neblina e escuridão típicas de Londres. E aquilo parecia não ter fim. Bons casacos eram artigos de luxo, pois nada parecia ser mais caro do que aquela cidade na Europa e no mundo. Atravessava Londres só para trabalhar quando tinha tempo, menos nos famosos ônibus vermelhos do que em metrôs multiculturais, e o estado deplorável das estações me fazia sentir uma toupeira ou outro animal qualquer debaixo da terra. E como em Londres tudo é possível, logo me vi como diretora de arte num filme de um amigo gay espanhol de temática sado-masoquista. Naquele momento, era eu quem me auto-flagelava sem perceber: o clima, as longas distâncias e a superpopulação daquela cidade ja se tornavam dolorosos para mim. O quadro de Monet acima, retratando a capital inglesa numa forte tempestade, revela muito do que se passava nos céus de Londres e em minha alma naquele período.

Mas a primavera vinha chegando, e com ela um sonho que marcaria minha vida. Acordei fascinada, anotei cada imagem ou sensação e não pude mais dormir. Nascia o roteiro do meu primeiro longa-metragem, tipicamente surrealista. Contava a historia de uma personagem sofrida, atormentada, o homem kafkiano que já havia mencionado no post anterior. Escondia-se do sol e de todos como um animalzinho assustado, e sua aparência era nítida: muito magro, pálido, loiro, olhos fundos e claros como um escandinavo. Na história, uma menina de cabelos curtos e cheia de vida - que eu sentia ser meu alter-ego -, chegava dos céus e se propunha a salvá-lo.

Ora, qual não foi minha surpresa quando iniciei um romance com um sueco fisicamente idêntico, e que mais tarde descobriria padecer de fobia social! Sim, a vida imitava a arte: me vi tentando de todas as formas ajudá-lo, incentivei-o a praticar comigo meditação, e o convenci sob duras penas a iniciar uma terapia. Só mais tarde fui perceber as coincidências com o meu sonho, que me assustam até hoje. Desde criança minhas noites de sono sempre tiveram um que de premonitório, e já não era algo tao novo para mim. Dei continuidade às aulas de cinema, ao roteiro do longa e aos amigos, ao contrário - por razões um pouco óbvias - do romance escandinavo.

Não demorou para que eu tivesse outro sonho-filme, realizado depois não em celulóide, mas na textura da realidade. Acordei e anotei: duas irmãs de 6 e 9 anos sofriam de fome e abandono numa zona rural do Brasil, e algo acontecia para mudar suas vidas e acentuar suas diferenças drásticas de personalidade. Como sempre, o sonho obedecia ao melhor estilo dos manuais de roteiro: primeiro ato, principio-meio-fim, diálogos encadeados cena apos cena...vinha pronto o projeto de mais um curta! Meses depois, a "coincidência": procurando emprego em Londres, me deparei com duas menininhas francesas de idades e personalidade idênticas ao sonho, que viria a cuidar na condição de babá. Os mesmos tipos de briga entre elas, a mesma tristeza pairando no ar - pois embora nao padecessem da miséria tipicamente brasileira, lidavam com o abandono do pai -, e as formas de reagirem ao sofrimento diametralmente opostas, como no sonho. Mal pude acreditar. Dessa vez mergulhei em teorias junguianas, freudianas, orientais, descobri experimentos que afirmam que viajamos no tempo enquanto dormimos. Isso me fez lidar melhor com episódios mais macabros da adolescência, como pesadelos anunciando mortes que se concretizaram.

Misticimos à parte, depois de tudo isso, renasci. Retornei ao Brasil de férias em pleno verão, revi pessoas queridas, mergulhei no mar e tatuei um sol no pulso. Escuridão, nunca mais. :) Se queria viver na Europa, que fosse num país mais claro e cheio de vida. E assim fui para a Espanha. Lá estudei a língua, reencontrei velhos amigos, pesquisei cursos de cinema e revi o sol, mesmo nos dias de inverno mais rigoroso. Vivia feliz em Madrid. Até que encontrei um português que estava visitando a cidade, e minha herança lusitana falou mais alto. :) Hoje vivemos juntos em Braga, Portugal, uma linda cidadezinha montanhosa onde estudo fotografia e o que mais interessar, enquanto me envolvo em outros projetos interessantes. Sim, esse é o resumo da minha vida errante na Europa. E não acaba aqui: ano que vem deveremos retornar a cidade do sol, !Dios me asista! E que esse mesmo Deus, através de outros belos sonhos, me ajude a entender mais sobre os mistérios do mundo.

4 comentários:

DieGo Albuquerque disse...

É... não dá pra negar que a Bahia tem sua alegria e sua festividade. Dei muita risada com sua descrição a respeito. E aqueles baleiros nos ônibus anunciando os produtos como se fossem locutores? Só se vê na Bahia. Também confesso que fiquei impressionado com a obscuridade de Londres! Através da sua descrição, era como se eu estivesse caminhando pelas ruas da cidade. Mas nunca tive muita vontade de viver em Londres mesmo (rsrs). Mas na España sim! Saudosa España e tudo que sei sobre ela! Enfim... fiquei també curioso com algumas revelações: não sabia que "ele" tinha fobia social. Nem me passaria pela cabeça algo tipo. Acho até um contracenso, pra dizer a verdade, mas que faz sentido faz. É, Xúa... sua vida dá um filme mesmo. E dos bons! =D

DieGo Albuquerque disse...

Sim, só eu comento aqui, né?
Vamo divulgar! E atualizar!
=D

Marcos Siqueira disse...

gostei muito!

SV disse...

Julia, que delicioso relato. Agora entendo a Julia que eu vi na foto, que tanto me impressionou. Te escrevi no e-mail, vamos nos comunicar mais.